Por Antenor Pinheiro
Muito justo se rebelar contra crateras que surgem nas ruas e avenidas das cidades nesta época do ano, que é quando os problemas de captação de águas pluviais intensificam tal infortúnio em função do período chuvoso. Porém, a questão parece não refletir uma honesta preocupação da população com a cidade enquanto espaço de todos. A indignação ganha exagerada dimensão somente porque, na essência, os buracos das ruas comprometem o patrimônio das pessoas traduzido nas rodas dos carros e seus sistemas mecânicos, além dos incômodos baques secos que enervam qualquer pacato cidadão – cada pancada vinda do assoalho faz tremer o coração motorizado, desequilibra o moral, e assim a alma ressente.
Isso tem explicação material e imaterial e é compreensível que ocorra. Material porque reclamar de buracos no asfalto tem estreita sintonia com o insustentável modelo de desenvolvimento urbano adotado pelos gestores das cidades brasileiras, cujos recursos não indexados drenam com prioridade à demanda do transporte individual motorizado. Imaterial porque a posse e uso do automóvel decorrentes deste sistema tornaram-se predadores e prevalentes, impregnaram-se no imaginário da população como valor socialmente superior, símbolo de poder e modernidade. Nas palavras do antropólogo Roberto Da Matta, somos “uma sociedade que adotou o carro como símbolo de superioridade social”. Daí, a importância das crateras das ruas das cidades na vida das pessoas!
Sob outros parâmetros, o estridente protesto contra os buracos das ruas, embora cíclico, promove lideranças, elege políticos, aquece o comércio, cria pauta jornalística e faz parte da alegoria popular. No fundo é produto de hipocrisia, porque na prática ele camufla o que há de mais precioso para a vida em comunidade – o sentido de urbanidade, o significado de cidade, a interação coletiva. Enfim, exercer direitos exclusivamente para reclamar de buracos no asfalto é reduzir a cidade a ponto de passagem de carros/motos e não o espaço de convivência capaz de harmonizar os interesses de seus cidadãos. É muita eloquência pra tão pouco alcance, vez que desmerece sistemas mais importantes para a mobilidade social, tais como o transporte sobre trilhos, barcas, bicicletas, ônibus e calçadas. Afinal, estes sistemas juntos deslocam 64 por cento das pessoas nas cidades, enquanto 36 por cento vão de carro e moto – eis a sintomática ironia!
Contudo, essa perversa lógica não é de agora, vem evoluindo desde o presidente Washington Luiz – com seu “governar é povoar; mas não se povoa sem se abrir estradas, e de todas as espécies; governar é, pois, fazer estradas” – e se cristaliza com Juscelino Kubitscheck – com sua política de integração nacional baseada na teoria dos polos econômicos com ramificações na incipiente indústria automobilística. Algo equivalente às recorrentes isenções de impostos destinadas a incentivar a venda de carros sem quaisquer exigências mitigatórias que compensem tamanha sandice. Não por menos, segundo estudos da professora Nara Simone Roehe, PUC/RS, a fatia da indústria automotiva no Produto Interno Bruto/PIB brasileiro passou de 12,5 por cento em 2000 para 18,2 por cento em 2011, enquanto as cidades, ó!
O esdrúxulo dessa curta história dos buracos das ruas está no seu contraponto que persiste por todo o ano e pouco é considerado pela população: os buracos, obstáculos, barreiras, ocupações e outras ocorrências que corrompem o direito de se deslocar a pé nos espaços de mobilidade das cidades. Aqui ainda mais se evidencia a falência da estética urbana e o sentido de coletividade que deveriam prevalecer sobre quaisquer aspectos. Afinal, mesmo condutores, somos todos pedestres – os que se deslocam nos passeios das calçadas públicas. Ao contrário dos leitos carroçáveis dedicados ao transporte individual, o metódico desprezo pelos buracos das calçadas no Brasil decorre da deliberada ausência de políticas públicas governamentais destinadas à recuperação dos ambientes públicos sob o princípio da equidade na ocupação e uso do solo urbano. A despeito das dezenas de leis a respeito, a verdade é que culturalmente passeios públicos não são importantes para as gestões das cidades não obstante tecnicamente serem também vias públicas. Seus milhares de buracos e ocupações irregulares são perenes e não merecem nem a devida atenção da governança, nem a mesma intensidade de gritaria que se ouve contra os buracos sazonais que cortam os pneus dos carros e motos.
Não há como se orgulhar dessas contradições e indicadores. Nem mesmo quando se consideram as diferenças entre as realidades dos milhares de municípios brasileiros, a verdade é que não vislumbramos nos gestores das cidades em geral alguma atitude que permita o inédito exemplo da inversão de valores. Eventualmente uma boa intenção isolada aqui e acolá, longe de representar uma articulação sistêmica que permita rediscutir a função das cidades à luz da tão aguarda reforma urbana sugerida por dezenas leis em vigor, mas carentes de efetivação!
Somente uma sociedade acossada por décadas de omissões e plena ausência de investimentos públicos em mobilidade urbana não percebe a diferença entre protestar de forma belicosa contra os buracos no asfalto e conviver pacificamente com os buracos das calçadas, apesar dos dois tipos de buracos convergirem num ponto inequívoco: a falência da gestão das cidades!
Publicação Original: Portal Ambiente Legal