Cidade holandesa dispensou a tradicional sinalização de trânsito e ganhou paz.
Por Antenor Pinheiro
Especial de Drachten e Leeuwarden, Holanda
Pense uma cidade com as dimensões, população e frota de veículos semelhantes a Mirassol, Vinhedo ou Cosmópolis, cujas ruas e avenidas não possuíssem semáforos, placas de sinalização, quebra-molas, meios-fios, lombadas eletrônicas e, no lugar do asfalto, peças pré-moldadas de concreto coloridas (intertravados) permeáveis proporcionando melhor conforto térmico e colaborando para a recarga do solo. Uma cidade onde as calçadas e ruas fossem a mesma coisa, niveladas e compartilhadas no seu uso. Somente a direção das ruas aparecesse em discretos sinais, e por incrível, onde todos se deslocassem em simétrico entendimento: ônibus, carros, motocicletas, bicicletas e pedestres circulando em invejável sintonia e baixa velocidade. Pense uma cidade de proporções médias que ao adotar tal conceito de circulação e urbanismo não tivesse mais acidentes de trânsito com mortes desde 2003. Essa cidade existe, chama-se Drachten, fica ao norte da Holanda, na província da Frísia, distante a aproximadamente 140 quilômetros de Amsterdam, capital do país. Foi a primeira cidade a adotar tal conceito, batizado “shared space” ou “espaço compartilhado”. Mas iguais a ela, hoje, já existem centenas na Europa, Ásia, América do Norte e até mesmo na América Latina, sim, em nosso continente, em maior ou menor escala.
Num primeiro momento, qualquer visitante brasileiro que pise Drachten se sente perdido diante de sistema viário tão incomum e aparentemente despropositado. Porém, com o passar das horas, gradativamente ele começa a se apropriar da novidade, principalmente se na condição de pedestre – o protagonista em quaisquer situações de trafegabilidade por lá. A sensação confirmada é a de vivenciar espaços de mobilidade em que os diversos modais de transportes coexistem sem estresse, em absoluta harmonia com o ambiente construído e a natureza.
ESPAÇO COMPARTILHADO (“SHARED SPACE”)
O idealizador do sistema viário “revolucionário” de Drachten foi o engenheiro holandês Hans Monderman, falecido de câncer em 2008 aos 62 anos de idade. Sua fama se consolidou mundialmente por achar que a infraestrutura tradicional de segurança de trânsito não somente é desnecessária como pode colocar em risco aqueles que intenciona proteger. Em outras palavras: sinais de trânsito colaboram para promover acidentes. Baseado nessa premissa, e possivelmente estudando a circulação viária de cidades asiáticas do Vietnam, Camboja, Índia e Laos, concluiu que a harmonia do trânsito está localizada mais na percepção do meio ambiente em sua dinâmica que nas prescritas regras oficiais de circulação e conduta.
Concebeu a sinalização de trânsito como elemento de coerção, passível de desobediência contumaz ou obediência cega, levando o motorista à perigosa condição de autossuficiência em suas atitudes. Para ele, as cidades devem criar modelos de circulação em que o trânsito seja compreendido como “um meio para se chegar a um destino e não um fim em si mesmo, de sorte que os espaços públicos acolham o tráfego de veículos, o convívio entre as pessoas e outras funções espaciais em contínuo equilíbrio”. Assim justificou o engenheiro no início dos anos 2000 (VANDERBILT, 2012). Ao propor, defender e implantar o novo projeto como forma de humanizar o sistema trânsito, Monderman não somente conseguiu o seu intento como materializou e universalizou o conceito do “espaço compartilhado” (shared space) no uso dos espaços de mobilidade das cidades.
educar, só piorava a segurança viária, com base na teoria de que “o motorista dedica mais atenção ao ambiente em que está envolvido se não estiver submetido ao rigor das regras de trânsito”. Para Monderman havia dois mundos: o mundo do sistema viário, todo padronizado e cheio de regras, e o mundo social, onde as pessoas convivem. “As cidades não devem ser rodovias, devem ser um mundo social”. Não queria dos motoristas um comportamento de trânsito, mas um comportamento social, conforme anota o nosso anfitrião engenheiro Pieter de Hann, seu sucessor no “Laboratório (Kenniscentrum) Shared Space” de Leeuwarden, cidade vizinha a Drachten.
É notório perceber isso nas ruas de Drachten. O inusitado do novo sistema está na comunicação visual recíproca entre as pessoas que interagem no viário e nas atitudes de cautela tomadas constantemente. Especialmente os motoristas parecem não se preocupar com as infrações possíveis, migrando sua atenção para o indispensável monitoramento visual sobre o ambiente por onde trafega. “Quando você trata as pessoas como idiotas, elas agem como idiotas, ou seja, quando o governo decide tutelar a responsabilidade dos cidadãos, eles não conseguem mais elaborar um juízo de valor sozinhos. Então, quando você quer que as pessoas desenvolvam valores próprios sobre como lidar com as interações sociais, você precisa libertá-las, dar-lhes mais liberdade”, afirmou o engenheiro Monderman em entrevista ao escritor e jornalista americano Tom Vanderbilt, (“Tráfego: Por que Dirigimos Assim?”).
IMPLANTAÇÃO
O conceito de “espaço compartilhado”, contudo, não foi absorvido facilmente pela comunidade de Drachten. Em entrevista exclusiva concedida na Câmara Municipal da cidade a secretária de Assuntos de Tráfego, vereadora do Partido Liberal da Holanda, Marjan van der Aart, lembra que foram três anos de debates legislativos e comunitários e uma forte gestão de comunicação social e de conceitos, o suficiente para que a ideia saísse do papel e se transformasse em “política pública que hoje atrai permanente atenção internacional”. É verdade! Nos moldes adotados em Drachten hoje o “shared space” está acolhido pela União Europeia e repercute em mais de 150 cidades mundo afora, dentre elas Makkinga, Haren e Emmen (Holanda), Ostende (Bélgica), Bohmte (Alemanha), Norrkoping (Suécia), Ipswich (Inglaterra) e Ejby (Dinamarca).
E não imagine que a experiência é factível apenas em cidades pequenas. Londres, desde o início desta década, mantém técnicos em Leeuwarden e Drachten que monitoram a evolução desta política pública em todo o mundo, inclusive no próprio distrito londrino de Kensington, onde o “shared space” foi implantado recentemente com sucesso na Kensington High Street, conectando todo o imponente complexo de museus da cidade ao Hyde Park e aos Kensington Gardens. Também está presente o conceito em Amsterdam, Copenhague e outras grandes capitais europeias. Isso significa que o “shared space” pode ser implantado por regiões, bairros, ruas também nas grandes cidades e metrópoles latino-americanas a exemplo de Bogotá que mexeu no seu desenho urbano ao criar o “Eixo Ambiental” e o magnífico “Espaço San Victorino”, como pudemos conferir em tempo recente. Sim! É possível adotar o “shared space” nas pouco criativas gestões de metrópoles do hemisfério sul num processo de expansão contínua, inclusive no Brasil.
INTERFACES
Drachten não somente aboliu sua sinalização tradicional de trânsito e implantou elementos de moderação de tráfego. São notórios os avanços nos aspectos urbanísticos, ambientais e, sobretudo, da morbimortalidade no trânsito. Para isso, os planejadores da cidade atuaram simultaneamente nos sistemas de drenagem urbana, esgotamento sanitário, tratamento de água, resíduos sólidos, habitação, transporte coletivo, acessibilidade universal e, especialmente, no estímulo ao uso da bicicleta, integrando todos estes elementos na gestão do uso e ocupação do solo. Utilizando-se de ferramentas de gestão popular e técnicas de comunicação social, permitiu com que o motorista sempre se perceba em espaços disputados, mas compartilhados e ambientalmente densos e não em vias livres.
Mas há controvérsias que ainda não foram superadas no contexto do “shared space”, como por exemplo, a mobilidade das pessoas com deficiência. A supressão dos meios-fios e guarda-corpos, por exemplo, comprometeu a segurança de navegação das pessoas cegas ou com dificuldades de visão e de mobilidade reduzida. Atualmente, técnicos procuram respostas a esta importante demanda social. Ainda assim, o espaço compartilhado continua a merecer dos planejadores lugar de destaque aos principais objetivos do desenho urbano das cidades.
ACIDENTES COM MORTES ACABARAM
Desde que o projeto foi implantado entre 2001 e 2003, Drachten não contabiliza acidentes de trânsito com óbitos ou graves lesões. No principal e mais famoso cruzamento da cidade, Laweiplein, o semáforo foi substituído por uma rotatória soerguida e florida, as caçadas e ruas viraram espaço comum, as placas de sinalização removidas, o pavimento repaginado e fortes jatos verticais de água que chegam a seis metros de altura são acionados quando os veículos que dele se aproximam excedem os 30 km/h. No lugar de um processo binário e mecânico – pare, ande – o movimento dos veículos tornou-se mais racional e organizado por meio das próprias atitudes dos motoristas. Pronto! Foi o suficiente para zerar a acidentalidade. Nas demais cidades mencionadas, inclusive Londres, igualmente a acidentalidade reduziu-se drasticamente. Para uma frota semelhante a cidades médias brasileiras (22 mil veículos), Drachten, que tem 48 mil habitantes, comemora a grande diferença: sua mortalidade no trânsito é traço nas estatísticas, enquanto as nossas colecionam índices epidêmicos de 27,8 mortes por 100 mil habitantes/ano.
– COMO CHEGAR –
Para chegar a Drachten o brasileiro tem as melhores opções a partir de São Paulo (Guarulhos) via Amsterdam (Schiphol) com vários voos diários possíveis pelas brasileiras TAM e GOL, e as estrangeiras, Lufthansa, British Airways, Air France, United Airlines, Alitália com uma ou duas escalas. Apenas a holandesa KLM faz voo direto em 11h 40m. Os preços (ida e volta) variam em função das datas e companhias aéreas, em geral oscilando entre R$ 2.800,00 e R$ 3.900,00, classe econômica. Ao chegar em Amsterdam, no próprio aeroporto (Schiphol), é possível adquirir a passagem de trem e de lá embarcar para Leeuwarden com escala na cidade de Zwolle (partidas de hora em hora) ou via direta (apenas quatro partidas diárias) ao preço de R$ 184,00 (ida e volta). A duração da viagem é de 2h39 (com escala) e 2h19 (direto). Ao chegar em Leeuwarden, em frente a estação central, há ônibus intermunicipais regulares para Drachten que fica a 15 quilômetros. Bastante confortáveis com passagem de R$ 52,00 (ida e volta). Se preferir, há taxis e vans regulares, com custos superiores: R$ 280,00 (ida e volta).
Publicado em Ambiente Legal Destaque Justiça e Política*
Publicação Original: Portal Ambiente Legal